Campo Grande-MS
sexta-feira, 18/10/2024

05/09/23

— Bem, que havemos de tirar agora? perguntou Grete, olhando em volta. Foi então que deparou com Gregório. Manteve a compostura, provavelmente em atenção à mãe, e inclinou a cabeça para ela, a fim de evitar que levantasse a vista. Ao mesmo tempo, perguntou-lhe, em voz trêmula e desabrida:

     — Não será melhor voltarmos um instante ao refeitório? Gregório adivinhou facilmente as intenções de Grete: queria pôr a mãe a salvo e enxotá-lo seguidamente da parede. Muito bem, ela que experimentasse! Agarraria ao quadro e não cederia. Preferia avançar sobre o rosto de Grete. Mas as palavras de Grete não haviam logrado senão desassossegar a mãe, que deu um passo para o lado e encarou o enorme vulto castanho no florido papel da parede. Antes de tomar perfeita consciência de que se tratava de Gregório, gritou roucamente:

     — Ai, meu Deus! Ai, meu Deus!- e deixou-se desmaiar de braços abertos no sofá, não dando mais sinal de vida.

     — Gregório! – gritou a irmã, fitando-o com um punho cerrado erguido na sua direção. Era a primeira vez que se lhe dirigia diretamente depois da metamorfose. Correu à sala contígua em busca de um frasco de sais para reanimar a mãe. Gregório quis igualmente ajudar, pois havia tempo para salvar o quadro, mas teve de fazer grande esforço para se descolar do vidro. Ao consegui-lo, correu atrás da irmã para a sala contígua, como se pudesse aconselhá-la, a exemplo do que costumava fazer, mas não teve outro remédio senão deixar-se ficar desamparadamente atrás dela. Grete remexia por entre vários frascos e, ao virar-se, entrou em pânico ante a visão de Gregório. Um dos frascos caiu ao chão, partindo-se. Ao saltar, um caco cortou o focinho de Gregório, ao mesmo tempo que uma droga corrosiva lhe salpicava o corpo. Sem mais detenças, Grete agarrou em todos os frascos que lhe era possível transportar e correu para a mãe, fechando violentamente a porta com o pé.

     Gregório via-se assim separado da mãe, que talvez estivesse à beira da morte, por sua culpa. Não se atrevia a abrir a porta, receando assustar Grete, que tinha de cuidar da mãe. Só lhe restava esperar. Consumido pelo remorso e cuidado, começou a andar para um lado e para o outro, trepando tudo, paredes, mobília e teto. Finalmente, acossado pelo desespero, viu a sala a andar à roda e caiu no meio da grande mesa. Decorridos alguns instantes, Gregório estava ainda impotentemente deitado na mesa, cercado pelo silêncio, que constituía talvez um bom sintoma. Depois soou a campainha da porta. A criada estava certamente fechada na cozinha e tinha que ser Grete a abrir a porta. Era o pai.

     — Que aconteceu? — foram as suas primeiras palavras. A expressão de Grete deve ter sido suficientemente elucidativa. Respondeu em voz abafada, aparentemente com a cabeça oculta no peito:

     — A mãe teve um desmaio, mas está melhor. Foi o Gregório que se soltou.

     — Bem me parecia — replicou o pai.

     — Eu bem vos avisei, mas vocês, as mulheres, nunca ligam. Era evidente para Gregório que o pai tinha interpretado da pior maneira possível a explicação demasiado curta de Grete e imaginava Gregório culpado de qualquer ato violento. Urgia, portanto, deixar o pai acalmar-se, visto que não tinha tempo nem processo de dar explicações. Precipitou-se assim para a porta do quarto e comprimiu-se contra ela, para que o pai visse, ao passar do vestíbulo,  que o filho tinha tido a louvável intenção de regressar imediatamente ao quarto e que, por conseguinte, não era preciso obrigá-lo a recolher-se ali, pois desapareceria num ápice, se simplesmente a porta estivesse aberta. O pai não estava em estado de espírito que lhe permitisse essas substituições. Mal o avistou, gritou um Ali simultaneamente irado e exultante. Gregório afastou a cabeça da porta e virou-a para o pai. Para dizer a verdade, não era o pai que imaginara; tinha de admitir que ultimamente se deixara absorver de tal modo pela diversão de caminhar pelo teto que não dava a atenção de outros tempos ao que se passava no resto da casa, embora fosse obrigação sua estar preparado para certas alterações.

     Mas, ao mesmo tempo, seria aquele realmente o seu pai? Seria o mesmo homem que costumava ver pesadamente deitado na cama quando partia para cada viagem? Que o cumprimentava quando ele voltava, à noite, deitado, de pijama, numa cadeira de braços? Que não conseguia ter-se de pé e se limitava a erguer os braços para o saudar? Que, nas raras vezes em que saía com o resto da família, um ou dois domingos por ano, nas férias, caminhava entre Gregório e a mãe; andavam bem devagar, o pai ainda mais vagarosamente do que eles, atabafado dentro do velho sobretudo, arrastando-se laboriosamente com o auxílio da bengala, que pousava cautelosamente em cada degrau e que, sempre que tinha alguma coisa para dizer, quase sempre era obrigado a parar e a juntá-los todos à sua volta? CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO, 06/09/23.

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