Campo Grande-MS
sexta-feira, 18/10/2024

03/09/23

O desejo que Gregório sentia de ver a mãe não tardou em ser satisfeito. Durante o dia evitava mostrar-se à janela, por consideração para com os pais, mas os poucos metros quadrados de chão de que dispunha não davam para grandes passeios, nem lhe seria possível passar toda a noite imóvel; por outro lado, perdia rapidamente todo e qualquer gosto pela comida. Para se distrair, adquirira o hábito de se arrastar ao longo das paredes e do teto. Gostava particularmente de manter-se suspenso do teto, coisa muito melhor do que estar no chão: a respiração tornava-se-lhe mais livre, o corpo oscilava e coleava suavemente e, quase beatificamente absorvido por tal suspensão, chegava a deixar-se cair ao chão. Possuindo melhor coordenação dos movimentos do corpo, nem uma queda daquela altura tinha consequências. A irmã notara imediatamente esta nova distração de Gregório, visto que ele deixava atrás de si, ao deslocar-se, marcas da substância pegajosa das extremidades das pernas, e meteu-se-lhe na cabeça arranjar-lhe a maior porção de espaço livre possível para os passeios, retirando  as  peças  de  mobiliário  que constituíssem

obstáculos para o irmão, especialmente a cômoda e a secretária.

     A tarefa era demasiado pesada para si e, se não se atrevia a pedir ajuda ao pai, estava fora de questão recorrer à criada, uma menina de dezesseis anos que havia tido a coragem de ficar após a partida da cozinheira, visto que a moça tinha pedido o especial favor de manter a porta da cozinha fechada à chave e abri-la apenas quando expressamente a chamavam. Deste modo, só lhe restava apelar para a mãe numa altura em que o pai não estivesse em casa. A mãe anuiu-se, entre exclamações de ávida satisfação, que diminuíram junto à porta do quarto de Gregório. É claro que a irmã entrou primeiro, para verificar se estava tudo em ordem antes de deixar a mãe entrar. Gregório puxou precipitadamente o lençol para baixo e dobrou-o mais, de maneira a parecer que tinha sido acidentalmente atirado para cima do sofá. Desta vez não deitou a cabeça de fora para espreitar, renunciando ao prazer de ver a mãe pela satisfação de ela ter decidido afinal visitá-lo.

     — Entre, que ele não está à vista – disse a irmã, certamente guiando-a pela mão. Gregório ouvia agora as duas mulheres a esforçarem-se por deslocar a pesada cômoda e a irmã a chamar a si a maior parte do trabalho, sem dar ouvidos às admoestações da mãe, receosa de que a filha estivesse a fazer esforços demasiados. A manobra foi demorada. Passado, pelo menos, um quarto de hora de tentativas, a mãe objetou que o melhor seria deixar a cômoda onde estava, em primeiro lugar, porque era pesada demais e nunca conseguiriam deslocá-la antes da chegada do pai e, se ficasse no meio do quarto, como estava, só dificultaria os movimentos de Gregório; em segundo lugar, nem sequer havia a certeza de que a remoção da mobília lhe prestasse um serviço. Tinha a impressão do contrário; a visão das paredes nuas deprimia-a, e era natural que sucedesse o mesmo a Gregório, dado que estava habituado à mobília havia muito tempo e a sua ausência poderia fazê-lo sentir-se só. — Não é verdade — disse em voz baixa, aliás pouco mais que murmurara, durante todo o tempo, como se quisesse evitar que Gregório, cuja localização exata desconhecia, lhe reconhecesse sequer o tom de voz, pois estava convencida de que ele não percebia as palavras —, não é verdade que, retirando-lhe a mobília, lhe mostramos não ter já qualquer esperança de que ele se cure e que o abandonamos impiedosamente à sua sorte? Acho que o melhor é deixar o quarto exatamente como sempre esteve, para que ele, quando voltar para nós, encontre tudo na mesma e esqueça com mais facilidade o que aconteceu. Entretanto, ao ouvir as palavras da mãe, Gregório apercebeu-se de que a falta de conversação direta com qualquer ser humano, durante os dois últimos meses, aliada à monotonia da vida em família, lhe deviam ter perturbado o espírito; se assim não fosse, não teria genuinamente ansiado pela retirada da mobília do quarto. Quereria, efetivamente, que o quarto acolhedor, tão confortavelmente equipado com a velha mobília da família, se transformasse numa caverna nua onde decerto poderia arrastar-se livremente em todas as direções, à custa do simultâneo abandono de qualquer reminiscência do seu passado humano? Sentia-se tão perto desse esquecimento total que só a voz da mãe, que há tanto tempo não ouvia, não lhe permitira mergulhar completamente nele. Nada devia ser retirado do quarto. Era preciso que ficasse tudo como estava, pois não podia renunciar à influência positiva da mobília, no estado de espírito em que se encontrava, e, mesmo que o mobiliário lhe perturbasse as voltas sem sentido, isso não redundava em prejuízo, mas sim em vantagem. Infelizmente a irmã era de opinião contrária; habituara-se, e não sem motivos, a considerar-se uma autoridade no que respeitava a Gregório, em contradição com os pais, de modo que a presente opinião da mãe era suficiente para a decidir a retirar, não só a cômoda e a secretária, mas toda a mobília, à exceção do indispensável sofá. É certo que esta decisão não era consequência da simples teimosia infantil nem da autoconfiança que recentemente adquirira, tão inesperada como penosamente; tinha, efetivamente, percebido que Gregório precisava de uma porção de espaço para vaguear e, tanto quanto lhe era dado observar, Gregório nunca usara sequer a mobília. CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO (04/09)

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