Campo Grande-MS
sexta-feira, 18/10/2024

11/09/23

E numa disposição pouco habitual e que parecia de certo modo ter contagiado toda a família, reservava-se, ciumenta e exclusivamente, o direito de tratar do quarto de Gregório. Certa vez a mãe procedeu a uma limpeza total do quarto, o que exigiu vários baldes de água — é claro que esta baldeação também incomodou Gregório, que teve de manter-se estendido no sofá, perturbado e imóvel —, mas isso custou-lhe bom castigo. A noite, mal a filha chegou e viu a mudança operada no quarto, correu ofendidíssima para a sala de estar e, indiferente aos braços erguidos da mãe, entregou-se a uma crise de lágrimas. Tanto o pai, que, evidentemente, saltara da cadeira, como a mãe ficaram momentaneamente a olhar para ela, surpresos e impotentes. A seguir, reagiram ambos: o pai repreendeu, por um lado, a mulher por não ter deixado a limpeza do quarto para a filha e, por outro lado, gritou com Grete, proibindo-a de tomar a cuidar do quarto; enquanto isso, a mãe tentava arrastar o marido para o quarto respectivo, uma vez que estava fora de si. Agitada por soluços, Grete batia com os punhos na mesa. Gregório, entretanto, assobiava furiosamente, por ninguém ter tido a ideia de fechar-lhe a porta, para o poupar a tão ruidoso espetáculo.

     Admitindo que a irmã, exausta pelo trabalho diário, se tivesse cansado de tratar de Gregório como anteriormente fazia, não havia razão para a mãe intervir, nem para ele ser esquecido. Havia a empregada, uma velha viúva cuja vigorosa ossatura lhe tinha permitido resistir às agruras de uma longa vida, que não temia Gregório. Conquanto nada tivesse de curiosa, tinha certa vez aberto acidentalmente a porta do quarto de Gregório, o qual, apanhado de surpresa, desatara a correr para um lado e para outro, mesmo que ninguém o perseguisse, e, ao vê-lo, deixara-se estar de braços cruzados.

     De então em diante nunca deixara de Abrir um pouco a porta, de manhã e à tarde, para o espreitar. A princípio até o chamava, empregando expressões que certamente considerava simpáticas, tais como: Venha cá, sua barata velha! Olhem-me só para esta barata velha do Gregório não respondia a tais chamados, permanecendo imóvel, como se nada fosse com ele. Em vez de a deixarem incomodá-lo daquela maneira sempre que lhe dava na gana, bem podiam mandá-la fazer todos os dias a limpeza ao quarto! Numa ocasião, de manhã cedo, num dia em que a chuva fustigava as vidraças, talvez anunciando a chegada da Primavera. Gregório ficou tão irritado quando ela principiou de novo que correu no seu encalço, como se estivesse disposto a atacá-la, embora com movimentos lentos fracos. A empregada, em vez de assustar-se, limitou-se a erguer uma cadeira que estava junto da porta e ali ficou de boca aberta, na patente intenção de só a fechar depois de a abater sobre o dorso de Gregório.

     — Então, não te aproximas mais?, perguntou, ao ver Gregório afastar-se novamente. Depois, voltou a colocar calmamente a cadeira no seu canto. Ultimamente, Gregório quase não comia. Só quando passava por acaso junto da comida que lhe tinham posto abocanhava um pedaço, à guisa de distração, conservando-o na boca durante coisa de uma hora, após o que normalmente acabava por cuspi-lo. Inicialmente pensara que era o desagrado pelo estado do quarto que lhe tirara o apetite. Depressa se habituou às diversas mudanças que se haviam registrado no quarto. A família adquirira o hábito de atirar para o seu quarto tudo o que não cabia noutro sítio e presentemente havia lá uma série delas, pois um dos quartos tinha sido alugado a três hóspedes.

     Tratava-se de homens de aspecto grave, qualquer deles barbado, conforme Gregório verificara um dia, ao espreitar através de uma fenda na porta, que tinham a paixão da arrumação, não apenas no quarto que ocupavam, mas também, como habitantes da casa, em toda ela, especialmente na cozinha. Não suportavam objetos supérfluos, para não falar de imundícies. Acresce que tinham trazido consigo a maior parte do mobiliário de que necessitavam. Isso tornava dispensáveis muitas coisas, que, insusceptíveis de venda mas mal empregadas para deitar fora, iam sendo acumuladas no quarto de Gregório, juntamente com o balde da cinza e a lata do lixo da cozinha. Tudo o que não era preciso de momento, era, pura e simplesmente, atirado para o quarto de Gregório pela empregada, que fazia tudo às pressas. Por felicidade, Gregório só costumava ver o objeto, fosse qual fosse, e a mão que o segurava. Talvez ela fizesse tenções de tornar a levar as coisas quando fosse oportuno, ou de juntá-las para um dia mais tarde as deitar fora ao mesmo tempo; o que é fato é que as coisas lá iam ficando no próprio local para onde ela as atirava, exceto quando Gregório abria caminho por entre o monte de trastes e as afastava um pouco, primeiramente por necessidade, por não ter espaço suficiente para rastejar, mas mais tarde por divertimento crescente, embora após tais excursões, morto de tristeza e cansaço, permanecesse inerte durante horas. Por outro lado, como os hóspedes jantavam frequentemente lá em casa, na sala de estar comum, a porta entre esta e o seu quarto ficava muitas noites fechada; Gregório sempre aceitara facilmente esse isolamento, pois muitas noites em que a deixavam aberta tinha-se alheado completamente do acontecimento, enfiando-se no recanto mais escuro do quarto, inteiramente fora das vistas da família. CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO, 12/09/23.

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